domingo, 30 de janeiro de 2011

Armadilha

Cresceu, estudou, trabalhou
ganhou seu salário
comprou seu carro
comprou sua casa
casou-se
pagou seus impostos
com o sucesso
pode comprar outro carro
viajou por todo o planeta
conta lindas histórias
opera em uma multinacional
comprou uma casa maior, uma casa grande
é orgulho dos amigos
esta em um patamar
que todos sonham em chegar
com muito suor adquiriu um avião particular
teve o sucesso que muitos sonham ter

Em um outro canto do mundo
Outra pessoa também cresceu
Não estudou
trabalhou também
diante de algum sofrimento seu
pode ver também outros sofrimentos
buscou ajudar
não comprou uma casa
levou uma vida simples
não foi considerado uma pessoa de sucesso
viu-se como uma minoria diante do mundo
e dessa maneira entendeu
que era preciso lutar
por qualquer minoria que seja
para que ninguém seja desmerecido
viu os portões dos prédios de grandes casas
das quais nunca entrou nem foi convidado
presenciou o mistério do mundo
o mistério da vida
de forma que em sua maturidade
era capaz de ver a beleza do amor
em todas as suas formas
e diante das torturas da realidade
entendeu que devemos procurar nossas verdades
e questionar o passado
e construir o futuro
receber com alegria a liberdade dos outros
por essas e muitas outras coisas
foi visto conversando com pessoas as quais não se fala
namorou com uma pessoa que não tem nada a oferecer
defendeu que o direito à vida
é uma decisão de cada pessoa
e não uma lei
defendeu que o mundo deve ser
deve ser governado pelo povo que aí está

e a cada passo que dava
aquele homem com sua grande casa
com seu bom salário
e sua bela esposa
aquele homem a qual todos ansiavam por estar em seu lugar
a cada passo que dava
aquela pessoa em sua grande mansão
crescia socialmente
de forma que seu pensamento
atraía grande público
que protegidos
protegiam-no

e ao ser denunciado em suas atitudes
o egoísmo, seu grande equívoco
eleito errado foi quem o delatou
o delatado então preso, castrado e banido
hoje em uma cela está
o que anos atrás seria uma cruz
e pergunta-se confuso, perdido
o que há de errado no que digo?

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Ela

Um dia desses qualquer acordei e fui fazer o café. A casa já não estava lá bem cuidada porque há tempos não recebia uma visita. Claro que sempre aparecia alguém querendo alguma coisa ou saber algo, mas para isso não valia investir meu tempo numa boa arrumada. Estava bem para mim e era o suficiente. Mas naquele dia algo diferente aconteceu. Peguei o café, coloquei água para fever, separei o filtro e aguardei a água esquentar. Coloquei o café no filtro e senti aquele aroma no ar. Fechei os olhos para sentir melhor e ao abrir, através da janela, vi... uma deusa do outro lado do vidro, ela era o melhor paladar, aquele calor do olhar que atrai para dentro de si, o toque do sabor pela língua que aquece enquanto desce pela garganta. Apenas a observava e saboreava. Decidi ir falar.

Abri a porta e quando olhei, nada. Um barulho no chão de carta. Fui ver era uma fatura para pagar no banco. Atrasada. - Droga, tenho que ir até a agência.

Fui ao banco e de pronto vejo uma fila enorme. Entrei. Não tinha escolha. No entanto, alguns segundos de espera e um amigo meu que trabalha nesta agência por acaso me encontrou e perguntou: é muita coisa que você tem que fazer? - Não, só uma conta atrasada – Vem aqui que eu resolvo isso então.
E enquanto ia atrás dele, vejo quem? Ela. Entrando na agência. Inacreditavelmente. Como pode? Seu caminhar abria espaços. Chamava a atenção de todos. Com um corpo escultural, beleza inigualável ela não precisava esperar. Era logo colocada para antes de todos os mortais que estavam a sua frente. - É só isso, cara você está bem? - Ahn? Eu? Ahh sim, estou bem sim... é que – Não precisa se explicar não, qualquer coisa é só me procurar !! - Obrigadão mesmo, valeu a ajuda!

Já meio sem entender, fui trabalhar como de costume. Voltando para casa, ligo a TV, as notícias de sempre. Sento-me confortavelmente e começo a adormecer. É como se me tivessem acariciando as costas, sinto suas mãos pelo meu corpo, suas unhas compridas. Sei que ela está aqui. Não sei como. Mas sei. Sinto. Estou em transe, perdido. Um silêncio de alguns segundos. Abro os olhos. Apenas a porta da sala aberta e mais nada.

Creio estar ficando louco e então decidi ficar sete dias em casa esperando ela voltar. E passo alerta, totalmente concentrado segundo a segundo. Cada centímetro do meu apartamento está sendo vigiado. Apareça quem for estarei pronto. Porém, sete dias se passaram e nada.

Cansado, agoniado, estressado decido então tomar um banho para relaxar. A água tem a temperatura agradável, escorre de cima a baixo e ela está novamente me vigiando. Eu sei. Sinto sua presença. Ela me encontra e toca em mim. Eu já não entendo mais, perdi completamente a razão, sei apenas que ela está ali. Seguro sua mão. E dessa vez pretendo pegá-la. E não vai mais fugir. Seguro firme. Abro o olhos e vejo! A porta... aberta... minhas mãos... vazias...

O que será isso? O que é que me persegue que não consigo ver? Que garras são essas? Que prazer é esse?

Isso aconteceu faz 10 anos. Ainda penso muito naqueles dias. Às vezes ainda sinto sua presença. E para não deixá-la sem nome, sem explicação, decidi então chamá-la de Felicidade.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Manual de como Encalhar

Você.
Primeiro quer só um beijo.
Até que um dia consegue.
Aí então acha o beijo algo estranho.
E então decide que precisa beijar mais alguém para ter certeza.
Pra saber se aquela coisa estranha é um beijo.
Ou se aquele beijo não foi um bom beijo.
No segundo beijo você percebe.
Que ele foi diferente do primeiro.
Então você conclui:
o primeiro foi mais “isso”
e o segundo mais “aquilo”
e pensa também
será que tem um mais “aquilo outro”?
E nessa hora você percebe.
Preciso de mais um beijo.
Ao terceiro beijo.
Você então descobre.
É, gostei mais do primeiro.
Aí você procura o primeiro beijo.
Mas aquele primeiro beijo.
Agora está namorando.
E isso significa que é hora de procurar
O quarto beijo.
E ele tem que ser igual o primeiro beijo.
E no quarto você percebe.
Que ele parecia mais com o segundo
E no quinto talvez lembrasse mais o terceiro
E o sexto?
Uma mistura de primeiro com segundo.
E o sétimo talvez.
Algo do sexto com o terceiro.
E a conta aumenta
E os anos passam
E a busca do primeiro
Aquele que você imaginou
Aquele que antes de beijar
Você pensava que era
Aquele lá
Nunca encontrou

Mas e a vida seria isso? Buscar a perfeição ou desistir?
Talvez.
Vai saber.
Ou não, né.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A certeza é um privilégio que não temos

Acordei como todos os dias pensando no trabalho e nas ligações que eu precisava fazer. Resolver alguns problemas. Estava escovando os dentes. Foi quando tocou o celular. Era uma pessoa em pânico. Não entendi nada, a voz estava trêmula e ela então disse: "Alô? Tem alguém aí?" - "Sim, o que que houve?" - "Acabou de estourar uma rebelião no presídio aí do lado, ligue a TV, tranque tudo que eles estão todos na rua"!!

Em pânico liguei a TV e nada... somente a voz ofegante no telefone... tremendo, tranquei toda a casa, fechei as janelas "Não tem nada na TV!"... e a voz respondeu "você tem certeza?"... eu disse "sim"... "primeiro de abril, seu besta! é o Fábio do escritório"... "porra cara, você me deixou em pânico"... "larga a mão de ser burro e olha o calendário"... xinguei ele até não poder mais... tempos depois me acalmei...

Fiquei então sentado na mesa, com aquilo na cabeça, remexendo o café por um longo tempo... até que me dei conta de uma coisa tão banal... eu havia sentido muito medo, mas muito medo mesmo... mas era mentira, não havia razão para ter medo. Eu não sabia que era mentira e vivi a mentira como se fosse verdade.

Parei assustado. Eu já pensei muitas vezes sobre a ilusão, mas desta vez me assustei. Fiquei num pânico maior que o anterior. Por alguma estranha razão imaginei que todo meu passado tivesse sido feito da mesma matéria que esta mentira que me foi contada. Pensei em tudo que vivi como verdade. Nas mentiras que contei e as pessoas que reagiram como eu reagi: acreditaram e se emocionaram com coisas que inventei. Assim como sabe-se lá quem mentiu para mim e eu acreditei e só hoje percebo isso.

Agora me torturo tentando saber o que de tudo que aconteceu foi verdade... e fica a dúvida...

Olhei para um copo de água na pia e pensei... "meu Deus, um perdido no deserto pode jurar que viu água quando na verdade esteve o tempo todo diante de alguma coisa no chão, um reflexo estranho que sei lá porque parece água, mas parece"

Então comecei a achar que tudo era ilusão e que todas minhas conclusões vinham da minha forma de ver... eu ouvi o desespero daquela pessoa ao telefone e eu sabia que ela estava certa... mas fui enganado... e posso estar sendo enganado agora nesse exato momento... mas por quem? por mim mesmo? pelos meus pensamentos? não sei... só sei que agora já não sei nem se aquele copo tem água... e não sei mais se a água é realmente água...

Mas e se tudo for ilusão? Quem criou isso? Eu? Deus? não sei... não consigo ver algo de concreto nisso tudo, acima de tudo porque se tudo é ilusão, como posso concluir alguma verdade de algo que nunca é de verdade?

E a verdade? essa que até 10 minutos atrás considerei verdade... ela continua aqui diante de mim. Real como sempre. O que dizer dessa realidade? Ela simplesmente me observa, calma. E eu vivo nela com toda a certeza que Deus me deu.

Quanto mais sinto a realidade, mais ela se mostra irreal, e quanto mais penso que a realidade é irreal, mais sinto que precisa haver algo de real na irrealidade. Precisa haver alguma verdade...

É certo que este copo está aqui... é certo porque estou sentindo... mas eu, naquele telefonema, senti aquela mentira como se fosse a verdade mais pura do mundo... maldita certeza que se foi... mas é certo então que isso tudo é irreal... mas como o irreal pode existir sem que haja uma realidade para o criar? droga de certeza que corrói...

Mas se tudo leva a dúvida, terei então que viver como? Preciso acreditar em algo...

Preciso ter fé em Deus... e como é difícil acreditar em algo que não se mostra...
Mas agora preciso ter fé também naquilo que vejo... este mundo que era tão verdadeiro acabo de perceber que preciso ter fé que ele existe... e ter fé que estou aqui... e ter fé que aquilo tudo era só uma brincadeira... e ter fé na ilusão... ter fé que a realidade se constrói com pó... e que a ilusão se constrói com o pó da realidade...

Talvez a certeza seja o único privilégio que não temos.

Alias, quem mexeu no meu calendário? 21 de janeiro? ahn?